Respublica     Repertório Português de Ciência Política         Edição electrónica 2004


kant.jpg (11486 bytes) 

Kant

Kant (1724-1804), em Ideen zu einer Geschichte der Menschheit in Weltbürgerlicher Absicht, de 1784, defende uma república universal em que cada Estado, mesmo o mais pequeno, pudesse esperar a sua segurança e os seus direito, não do seu próprio poder ou do seu próprio juízo jurídico, mas apenas dessa grande sociedade das nações (foedus amphictyonum), duma força unida e da decisão da vontade comum fundamentada em leis .

A república universal (Weltrepublik) em Kant constitui, assim, um mero princípio regulativo, um mero imperativo categórico. O mesmo imperativo que impõe um Estado-razão, enquanto exigência para se superar o estado de natureza, visando estabelecer o reinado do direito na sociedade das nações. E isto porque a paz pelo direito não é uma quimera, mas um problema a resolver, consequência do reinado do direito, que o progresso um dia estabelecerá .

Nessa obra, Kant considera que o maior problema da espécie humana, a cuja solução a natureza força o homem, é o estabelecimento de uma sociedade civil, que administre universalmente o direito, isto é, a criação de uma sociedade, em que a liberdade, submetida a leis externas, se encontre ligada, o mais estreitamente possível, a um poder irresistível, isto é, à criação duma constituição civil e perfeitamente justa . Ora este problema é, simultaneamente, o mais difícil e o que mais tardiamente é resolvido pela espécie humana , porque o problema do estabelecimento de uma constituição civil perfeita depende do problema das relações legais entre os Estados, e não pode ser resolvido sem se encontrar a solução deste segundo .

 

Por visionária que esta ideia possa parecer (...) ela é todavia a inevitável saída do estado de miséria em que os homens se põem uns aos outros, miséria essa que há-de forçar os Estados (por muito que lhes custe) exactamente à resolução a que foi forçado, embora contra a sua vontade, o homem selvagem: a de renunciar à sua brutal liberdade e procurar tranquilidade e segurança numa constituição legalmente estabelecida. Assim, todas as guerras são apenas outras tantas tentativas (não na intenção dos homens, mas na da natureza) para suscitar novas relações entre os Estados, e, através da destruição, ou pelo menos do desmembramento dos antigos, formar novos corpos, que por sua vez não são capazes de se manter em si mesmos ou em relação aos outros, pelo que terão de passar por novas e semelhantes revoluções; até que, finalmente, em parte devido à melhor ordenação possível da constituição civil, internamente, em parte devido a acordos comuns e à legislação, externamente, se conseguirá um estado de coisas que, à semelhança de uma comunidade civil, será capaz de se manter por si mesmo como um autómato .

Contudo, é no seu opúsculo Projecto Filosófico da Paz Perpétua (Zum ewigen Frieden ein philosophischer Entwurf), de 1795 que o modelo atinge as suas culminâncias .

Na primeira secção desta obra, elabora uma série de artigos preliminares tendo em vista uma paz perpétua entre os Estados:

Nenhum tratado de paz deve valer como tal, se o mesmo foi concluído reservando-se tacitamente matéria para uma guerra futura.

Para Kant, tal tipo de tratado de paz não passaria de um armistício de uma suspensão das armas que, não poderia considerar-se como um estado de paz perpétua.

Nenhum Estado independente (pequeno ou grande, pouco importa aqui) poderá ser adquirido por outro Estado, por herança, troca, compra ou doação.

Porque um Estado não é um ter, um património, mas sim uma sociedade humana.

Os exércitos permanentes (miles perpetuus) devem ser inteiramente suprimidos com o tempo.

Não podem contrair-se dívidas públicas tendo em vista conflitos externos do Estado.

Nenhum Estado deve intervir pela força na constituição e no governo de um outro Estado.

Nenhum Estado, em guerra com outro, deve permitir hostilidades de natureza tal que tornem impossível a confiança recíproca por ocasião da futura paz: por exemplo: a utilização de assassinatos, de envenenamentos, da violação de uma capitulação, da maquinação da traição no Estado com o qual se está em guerra.

Na segunda secção, enumera os artigos definitivos tendo em vista a paz perpétua entre os Estados:

Em todo o Estado a constituição deve ser republicana.

Neste sentido, considera que a constituição primeiramente instituída seguindo os princípios da liberdade pertence aos membros de uma sociedade (enquanto homens); em segundo lugar, seguindo os princípios da dependência de todos, de uma única legislação comum (enquanto súbditos) e, em terceiro lugar, conforme à igualdade desses súbditos (como cidadãos).

O direito das gentes deve ser fundado sobre um federalismo de Estados livres.

É que para Kant, os povos, enquanto Estados, podem ser julgados como os indivíduos; no seu estado de natureza (isto é, independentes de leis que lhe sejam exteriores) lesam-se mutuamente, a começar pelo facto de serem vizinhos e cada um, tendo em vista a respectiva segurança, pode e deve exigir do outro, que ambos se submetam a uma constituição, semelhante à constituição civil onde cada um possa ver o seu direito garantido. Isto constituiria uma liga de povos (Völkerbund) que não seria necessariamente um Estado de povos (Völkerstaat ou civitas gentium). Nisso haveria uma certa contradição, dado que qualquer Estado, com efeito, compreende a relação de um superior (o legislador) com um inferior (aquele que obedece, isto é, o povo); mas muitos povos num Estado não constituiria senão um povo (porque devemos aqui ter em conta os direitos recíprocos dos povos enquanto constituem um número determinado de Estados diferentes sem os confundir num só Estado) o que contradiz a hipótese .

Mais acrescenta: o método utilizado pelos Estados para prosseguir o seu direito nunca pode ser um processo como perante um tribunal exterior, mas unicamente a guerra; pela qual, todavia, como pelo seu resultado favorável, a vitória, nada é decidido relativamente ao direito; o tratado de paz de facto põe fim à guerra presente (...) mas não ao estado de guerra .

Deste modo, teríamos um Estado de povos (civitas gentium) que (...) englobaria finalmente todos os povos da terra.

O direito cosmopolita deve limitar-se às condições de hospitalidade universal 

A hospitalidade era entendida como o direito que tem um estrangeiro, por ocasião da sua chegada ao território de outrem, de não ser tratado como um inimigo.

Constituiria uma defesa da moralização da política. Contra as máximas sofísticas do fac et excusa, do si fecisti, nega, do divide et impera, que constituiriam as astúcias utilizadas pela sabedoria imoral.

Assim, o acordo da política com a moral só é possível numa união federativa — Genossenschaft — (que é portanto dada à priori, e necessária segundo os princípios de direito); e toda a prudência política tem por base jurídica a instituição desta união, dando-lhe o maior desenvolvimento possível.

Kant critica a ideia da monarquia universal, considerando-a como um despotismo sem alma, depois de ter aniquilado os germes do bem, acaba sempre por conduzir à anarquia , defendendo as leis públicas de uma liga de povos que crescerá sempre e abraçará finalmente todos os povos da terra .

Como espaço intermédio, acredita numa simples aliança confederativa entre Estados soberanos: pode chamar-se a esta espécie de aliança (Verein) de alguns Estados, fundada na manutenção da paz, um Congresso permanente dos Estados, à qual é permitido a cada um dos Estados vizinhos associar-se. Tal foi (pelo menos no que diz respeito às formalidades do direito das gentes, relativamente à manutenção da paz) a assembleia dos Estados Gerais que teve lugar em Haia na primeira metade deste século  e onde os ministros da maior parte das cortes da Europa, e mesmo as mais pequenas repúblicas, apresentaram as suas queixas contra as hostilidades promovidas por uns contra os outros e fizeram assim de toda a Europa como um só Estado federado, que transformaram em árbitro dos seus diferendos políticos (...) Não é, pois, preciso aqui entender por Congresso senão uma espécie de união voluntária e revogável a qualquer tempo, de diversos Estados e não como a dos Estados Unidos da América, uma união fundada numa constituição política e, portanto, indissolúvel. Só assim pode realizar-se a ideia de um direito público das gentes que acabe com os diferendos entre os povos de uma maneira civil, como através de um processo e não de uma maneira bárbara (à maneira dos selvagens), isto é, pela guerra .

Para ele, o direito dos Estados (Staatenrecht, ius publicum civitatum) é um direito deficiente ou precário, havendo que constituir uma união de Estados (Staatsverein) ou um Estado dos povos (Völkerstaat, civitas gentium), com um direito cosmopolítico (Weltbürgerrecht, ius cosmopoliticum), um direito das gentes que geraria uma liga de povos (Völkerbund) que não teria poder soberano, constituindo uma espécie de federação (Genossenschaft, Föderalitat, foedus Amphyctionum), sempre denunciável, tudo, dentro da sua classificação tripartida do direito público, num crescendo que vai do direito político (Staatsrecht), passa pelo direito das gentes (Völkerrecht), até chegar ao direito cosmopolítico .


© José Adelino Maltez. Todos os direitos reservados. Cópias autorizadas, desde que indicada a proveniência: Página profissional de José Adelino Maltez ( http://maltez.info). Última revisão em: